O perfume do jasmim
A primavera anuncia-se acusticamente no meu jardim, os insetos acorrem, poisam
nas majestosas flores de magnólia que florescem pouco depois das camélias.
Sentada à mesa no alpendre, os raios luminosos do sol brindam as folhas de papel,
a lápis começo por pôr os primeiros apontamentos sobre a beleza do tempo, do
silêncio, do fazer em Onda Farpa Curva.
Os dias estão cada vez maiores e num só dia parece que passamos por entre as
diferentes estações: manhãs frias que mergulham numa densa neblina, inícios de
tardes solarengas, noites em que chove a cântaros. O jardim apresenta-se como
uma coleção, nele irrompem as primeiras tulipas, o alecrim mostra-se com
pequenas flores azuis lilás, as amoreiras vestem-se de verde e chega agora o
tempo de podar e cuidar das roseiras damascenas, trabalhando a terra em seu
redor. Uma coleção tem o poder de nos espantar, de nos inspirar, o colecionador é
como um mago que vê através do que tem entre mãos, assim é com Xana Sousa.
As burdas (1), pejadas de flores azuis e letras, são muitas vezes a sua matéria-prima e
têm tantas proveniências, algumas vêm da sua casa de família, outras vai
encontrando aqui e acolá, há até quem as ofereça por já conhecer o seu trabalho.
A plissagem, a arte de dobradura dos tecidos de diferentes formas criando volumes
e texturas, aprendeu com a avó Bia que era costureira. Xana Sousa olhava
atentamente para aquelas mãos, depois transferia o olhar para as suas, absorta
num delicado e constante movimento. Os desenhos plissados requerem o domínio
incondicional das formas, é preciso treinar, repetir e repetir o repetido, num trabalho
lento e continuado, como nas artes ligadas à tradição japonesa. É necessário
concentração e um recolhimento meditativo que contempla o silêncio.
A prática da meditação — estar aqui e agora, não em outro lugar ou em outro
tempo, é uma reunificação de uma reunião, de estarmos connosco. Numa primeira
aproximação ao budismo zen, esta ideia pode parecer desconcertante. Afinal, onde
estaríamos se não presentes no presente momento?! Mas será mesmo assim? Na
prática pode ser aterrador estar no momento presente, pois significa renunciar a
muitas coisas. Significa não pensar no momento seguinte, significa não pensar no
que poderia dizer, não imaginar uma conversa que pode acontecer mais tarde, não
esperar com impaciência o encontro com a pessoa amada. É realmente sobre
renunciar, sobre deixar ir.
O verbo criar, segundo Manuel Zimbro (2), não tem passado nem futuro no universo,
essencialmente é presente. Não existe nem primeiro, nem sétimo dia, há sim, o
instante da criação — o tempo espacial. O tempo, através do qual se exerce a
memória total da humanidade, na verdade não conta para o universo, mas serve-se
sim do tempo espacial. Aqui, não pode haver passado, ou seja, não podem haver
formas sem tempo, não pode haver futuro, ou por outras palavras, haver tempo sem
formas. A vida inteira vive no tempo das formas, é uma vida absoluta num presente,
também ele, absoluto. Onda Farpa Curva é sobre isto, e não é pouca coisa. É sobre
a beleza da usura, o contacto das mãos no decorrer de um longo e repetido
processo, o efeito do tempo.
Desenhos plissados nascem das mãos cuidadosas e cuidadoras da artista.
Resultam de gestos firmes, ponderados e de plena atenção. O desenho testemunha
o significado da nossa presença no mundo, não tanto por aquilo que fica, mas
curiosamente pela ausência que revela. O desenho precisa do desenhar, mas o
desenhar não precisa nem de lápis, nem de borracha. O desenho resulta daquilo
que passa por nós e nos atravessa enquanto o fazemos. É fazer para descobrir.
Em Onda Farpa Curva és muito mais que um espectador, és parte integrante do
desenho. Xana Sousa convida-te a desenhar usando as “farpas” que advêm da
peça que dá nome à exposição. Desenhar vai muito além de uma mera
representação, é mais profundo. Desenhar é uma forma singular de aproximação a
si mesmo, é retratarmo-nos no desenho e não tem fim.
Regresso ao meu presente, a esta mesa de madeira no alpendre. Alegra-me
encontrar, regularmente, a visita agradável de um melro que todas as manhãs se
passeia junto ao lago, parece que se sente bem no meu jardim, como o entendo...
Cerro os olhos e sinto uma fragrância maravilhosa e familiar — o perfume do jasmim
em flor.
Cláudia Ramos
Curadora e Investigadora
(1) A revista Burda é uma revista de moldes de costura que surge na década de 50 do séc. XX, na Alemanha, pelas mãos de Aenne Burda.
(2) Manuel Zimbro (1944-2003) Artista português multidisciplinar. Aproximou-se do pensamento de David Bohm e do budismo zen, filosofia que divulgou em Portugal.
Exposição: Onda Farpa Curva
Artista: Xana Sousa
Local: Chiquita Room (Barcelona)
Data: de 19 de março a 30 de abril de 2025